segunda-feira, 4 de abril de 2011

Trocando em Miúdos

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Eu vou lhe deixar. A propósito, a medida do bonfim não me valeu. Mas fico com o disco que gosto, o do pixinguinha. (...) Sim. O resto é seu, não me importo. Tchau.

Deu tchau, mas não desligou ainda. As orações desse seu primeiro período quiseram levar na esportiva a situação, uma reação comum aos seres. Respirou fundo e agora sim nada de esportiva. Agora falaria com o sentimento original do seu corpo, cheia de náusea e formigamento. Por dentro, trocava-se em miúdos.

Pode guardar as sobras daquilo que chamávamos de lar. Guarda tudo que fomos nós. Pode guardar até naquela gaveta do meio, cheia de nós de meias, pra o "nós" não ficar tão sozinho. (e sorriu)

[Se você leu o trecho acima e achou tosco, é porque foi de fato. Lembre-se de que não foi escrito e depois dito. Foi dito e depois escrito. Eu não tenho culpa. Zelo para que tudo possa ser muito bem entendido.]

E sorriu. Voltava a brincar como tinha começado. Depois pediu para guardar as melhores lembranças, que não iria lhe custar nada, que o que foi bom tinha mais é que ficar guardado mesmo. Mais piegas impossível. Entretanto, respirou novamente. Agora teve receio de que aquela maneira como falava deixasse a entender que fazia algo sem pensar muito bem, que estava beirando o arrependimento. E não estava. Então decidiu falar a verdade como ela era; um discurso totalmente diferente. Se isso fosse uma música até a melodia oscilaria.

Olha, aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer. Até a aliança mesmo, você não precisa guardar. Sei lá, faz outra coisa com ela. Já sei, derrete e faz um broche! Ou então empenha e compra alguma coisa. Não vai dar pra comprar um carro, mas vai ajudar nas contas do mês. Bom, agora vou indo mesmo, de vez. Tchau.

Preciso ser um pouco prolixa para que entendam o que se deu, coisas que um parágrafo não explica. Antes de dizer que ia mesmo, de vez, bateu aquela angústia que precede o choro. Dessa maneira, era melhor desligar. Lembrou-se do porquê disso tudo, e achou melhor desligar. Desligou antes que dissesse umas poucas e boas, que não lhe daria o prazer de vê-la chorar, que, apesar de todo o estrago feito, não iria lhe cobrar absolutamente nada, pois não era do seu feitio, ela era boa demais pra isso. Mas desligou antes de dizer ao telefone. Sobrou pra empregada, a Maria.

Estou errada, Maria? Aliás, ele que aceite uns trocados da dita cuja, pro aluguel. Idiota. Maria, pega aquela mala que vou viajar. Pensa que eu vou ficar aqui choramingando? Ah, não. Aproveita e pega pra mim, Maria, aquele livro que deixei na mesinha de cabeceira, que eu vou levar. Não vou desocupar minha cabeça por um segundo, pra não pensar besteira. Não mesmo. Também não vou levar mais muita coisa. Só umas roupas e a carteira de identidade. Como assim, o livro não está lá?

É claro que o livro não estava lá. Ela o tinha emprestado há séculos, mas ele nunca tinha lido. Não sei como esqueceu. Um Neruda daquele não se esquece. Um verdadeiro achado. Quando se deu conta pensou em deixar outro recado dizendo da sua falta de cultura. Mas achou melhor não fazer alarde. Só bateu o portão e despediu-se de Maria.

Tchau, Maria.

A Maria, que agora ia entrar pra ver se pegava ainda o finalzinho do seu programa de televisão favorito, interrompido anteriormente, respondeu "Tchau D. ...". E depois, bem baixinho, "já vai tarde".


lua

Um comentário:

Rivaldo Júnior disse...

incrível...

palmas [ecos]